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D. Santiago Garcia de Mendoza (c. 1812 – 1884)

Refugiado carlista. Aventureiro influente no período da Patuleia. Escritor. Polemista.

Não é certo o local da Galiza onde nasceu D. Santiago Garcia de Mendoza, como também não se conhece a data, nem está provada a sua filiação. Sousa Machado dá-o como filho de D. Joaquín Garcia, Governador do Forte de Marín, em Pontevedra e de sua mulher D. Catarina de Mendoza e, por uma referência que Camilo Castelo Branco lhe faz, citando uma carta de Pinho Leal, a data estará entre 1810 e 1816.

  • Retrato em fotografia de D. Santiago Garcia de Mendoza.
    Retrato em fotografia de D. Santiago Garcia de Mendoza.

D. Santiago foi uma curiosíssima personagem. Aventureiro, destemido, apaixonado, culto e cavalheiresco, exerceu um grande fascínio em Portugal, onde teve uma intensa atividade, acabando por fixar residência em Ponte de Lima.

Ainda muito novo alinhou com os carlistas na violenta contenda que resultou da pretensão de Carlos de Bourbon ao Trono de Espanha, contra seu irmão Fernando VII, pretensão que em Portugal era bem vista por el-Rei D. Miguel e que teve o apoio explícito da população conservadora, sobretudo no norte do País. Parece ter andado metido nas guerrilhas que assolaram a Galiza, com D. Manoel Alvarez Romero, que viria a ser preso no Porto, julgado como desertor e salteador de estrada, e garrotado em Celanova, em 6 de abril de 1850. A descrição das últimas horas de vida deste Romero, com a carta de despedida que escreveu a sua mulher, correu impressa no Porto; nela se diz que o réu terá desabafado com o juiz nestes termos – “Senhores, peço a todos que me perdoem, assim como eu perdoo de coração aos meus inimigos. Tenho porém aqui dous (pondo a mão sobre o coração) que muito peso me fazem. Disseram-me que Garcia me atraiçoou: póde ser que assim fosse, porque ele estava em Londres considerado como general, e eu lhe descobri a impostura. Veio depois para Portugal, conseguiu enganar os portuguezes, e casou com uma joven, que reúne em si as melhores prendas de nobreza, riqueza e formusura. Não sei que tivesse parte na minha entrega…”. Sobre este assunto parece-nos esclarecedor um comentário de Camilo, numa carta escrita a Tomás Mendes Norton, em 1884 – “Eu não pretendo denegrir a memoria do Garcia, e occultarei as atoardas q. são peores do q. V.Exª sabe, antes da sua vinda da Galliza (pátria d’elle) onde nunca mais foi…”. Em 1846 estourou no Minho a revolução da Maria da Fonte, também conhecida por Patuleia, exacerbando ódios acumulados contra o governo de Costa Cabral, a pretexto do confinamento dos enterros aos cemitérios e do aumento das contribuições fiscais. A primeira fase da revolta, que decorreu na primavera, encerrou-se com a exoneração do Governo e a substituição de Costa Cabral pelo Duque de Palmela. Mas os ódios recrudesceram, reunindo cabralistas, setembristas e até antigos miguelistas, que exigiam mesmo a destituição da Rainha. O clima de alvoroço levou à queda de Palmela em outubro, tomando o seu lugar o Duque de Saldanha, para chefiar um governo de força. A Junta do Porto, que ainda não estava dissolvida e outras que entretanto se refizeram, pegaram em armas e arrastaram o País para a guerra civil, com as guerrilhas a correrem a província a ferro e fogo.

  • Páginas de um opúsculo que correu em 1850, sobre a prisão e execução do guerrilheiro carlista D. Manoel Alvarez Romero_1 Páginas de um opúsculo que correu em 1850, sobre a prisão e execução do guerrilheiro carlista D. Manoel Alvarez Romero_2
    Páginas de um opúsculo que correu em 1850, sobre a prisão e execução do guerrilheiro carlista D. Manoel Alvarez Romero, onde D. Santiago Garcia de Mendoza é veladamente acusado de o ter traído.

É neste momento que aparece em cena D. Santiago Garcia de Mendoza. Por meados de outubro apresenta-se em Braga, como oficial espanhol de alta patente do exército de D. Carlos de Bourbon, que havia capitulado em Vergara e colheu a adesão dos realistas bracarenses, que logo acharam ter sido ele enviado pelo Rei D. Miguel, proscrito em Viena de Áustria há doze anos. Alguns, em Guimarães, vendo-o garboso e tão bem fardado, até lhe beijaram as mãos, tomando-o pelo próprio Rei. Constava até que tinha vindo junto com o General escocês MacDonell, que comandara o exército de D. Miguel em 1833 e estava agora de regresso e entrincheirado em Braga com dois mil veteranos miguelistas e a confiança dos patuleias.

Apresentado ao Padre Casimiro José Vieira, um dos caudilhos da insurreição popular, também este escondido em Braga, logo partiu com ele e com uns tantos mais, para sublevar a gente de Vieira contra um batalhão de “sirzinos” que por lá andava. Camilo pinta o quadro com estas cores – Ahi appareceu D. Santhiago fardado de general, José Custodio [promovido a seu Ajudante de Ordens] de capitão de cavallaria, um estado maior de sujeitos em éguas com espadões e botas á Frederica, a musica de Calvos a bufar o ‘Rei-chegou’, as legioens formadas, ‘uma vista de respeito’, diz o chronista. O general hespanhol fez allocução ás massas, a incutir-lhes coragem no ataque aos Sirzinos. Um effeito doido! E nestes preparos andou uns meses, correndo a corda do Minho, do Gerês às Terras de Basto, alimentando crises de emulação entre os seus pares no comando dos farroupilhas. A tal ponto chegou o despautério, que até o Dr. Cândido Rodrigues de Figueiredo, que se intitulava Presidente do Supremo Governo Miguelista, tentou aliciar o galego para liquidarem de vez MacDonell. E o próprio D. Santiago, com o maior dos desplantes, ia contando estas peripécias, como refere D. João da Tapada num dos seus opúsculos.

MacDonell embirrava com D. Santiago, não suportava as suas arengas nem reconhecia o posto a que este se arrogava. Intimou-o a largar o comando e como ele não obedecesse deu-lhe voz de prisão. O galego, porém, prevenido a tempo, conseguiu fugir.

O ano de 1847 começa mal para os patuleias. Em janeiro é MacDonell assassinado e em junho, a armada inglesa e as tropas espanholas de Concha impõem a capitulação em Gramido. Entretanto, D. Santiago, aboletado em Guimarães na casa do Visconde de Azenha, perde-se de amores por sua irmã D. Emília, que se dizia fora já amante de D. Miguel quando era Aia da Infanta D. Isabel Maria e casa com ela, estabelecendo-se o casal em Viana, já que a noiva trouxera no dote algumas propriedades em Ponte de Lima e ele próprio também lá tinha a Quinta de Vilar, que lhe deixara o seu amigo de Crasto, João Malheiro.

  • A Casa da Porta de Braga, na rectaguarda dos Paços do Concelho
    A Casa da Porta de Braga, na rectaguarda dos Paços do Concelho, destacada de uma fotografia geral da vila de Ponte de Lima feita em 1858, quando era já propriedade de D. Santiago. (Fot. provavelmenta da autoria de Antero Frederico de Seabra).

A derrota não desfizera a esperança e arregimentava muitos empenhos na criação do Partido Legitimista, que se manifestava às claras, e na instituição de uma sociedade cripto-realista, a Ordem de S. Miguel da Ala, que se mantinha secreta, e com a qual D. Santiago, como muitos outros cavalheiros do Alto Minho, tinha relações privilegiadas. A Maçonaria não lhe perdoou e a 29 de outubro de 1849 é preso e conduzido ao Castelo de S. João da Foz do Douro, onde ficou voluntariamente acompanhado pela sua intrépida mulher. Passado um mês conseguem fugir e o caso cai no esquecimento, talvez com a discreta cumplicidade do velho inimigo Cabral, agora feito Conde de Tomar e a chefiar o Governo.

Volta a Viana, mas ao fim de um ano fixa-se definitivamente em Ponte de Lima, onde adquire um excelente casarão à Porta de Braga, que fora de Gonçalo Coelho de Araújo, o heroico militar que, já octagenário, defendera a praça de Cerveira das acometidas de Soult. Acomoda-se à política, ao País e às pessoas, mas não a todas. Não perdoava a quem o ferroasse e disso é prova bastante a troca de cartas abertas em diversos jornais da região sobre as acusações de traição na entrega de Romero, que à sorrelfa lhe faziam algumas pessoas gradas de Ponte de Lima[1]. Esta picardia teve o seu ponto alto quando, enfurecido com alguns dislates de um jovem de dezoito anos, José de Sá Coutinho (que mais tarde seria o 2º Conde de Aurora) quis defender-se em duelo e publicou uma “Refutação documentada offerecida a consideração das pessoas sensatas de todos os partidos por… contra o calumniador convicto José de Sá Coutinho Júnior da villa de Ponte do Lima” (Valença, Tipographia do jornal A Razão, 1858).

  • Retrato de D. Santiago Garcia de Mendoza, já próximo do final da vida
    Retrato de D. Santiago Garcia de Mendoza, já próximo do final da vida, com a farda de Cônsul de Portugal em Marselha, cidade onde esta fotografia foi feita.

Numa postura completamente diferente estava ele quando fez o encomiástico elogio do cultíssimo Dr. José Joaquim da Silva Pereira Caldas, publicando o “Esboço crítico acerca de Pereira Caldas e da sua vindicação do fabrico de papel com massa de madeira” (Braga, 1867). No mesmo ano escreveu também um interessante trabalho sobre a já então extinta “Sociedade dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Público estabelecida na vila de Ponte de Lima” e publicou-o, acrescentando-lhe os Estatutos daquela corporação, com o título “Memoria offerecida á Illma Câmara Municipal, e Habitantes do concelho de Ponte do Lima” (Braga, 1867).

Contudo, a publicação que mais o notabilizou foi “A água : Compilação dos principaes elementos de geologia para o descobrimento dos mananciaes aquaticos” (Porto, 1866). Com o manuscrito no bolso foi a Seide ler alguns capítulos a Camilo Castelo Branco. Camilo gostou e, por sua iniciativa ou por empenhos do autor, recomendou-o a António Feliciano de Castilho, para ser proposto para a Academia Real das Ciências. E desta forma saiu D. Santiago como Sócio Correspondente de tão prestigiada agremiação.                                                                                                                      

  • Capas de brochura das quatro obras publicadas da autoria de D. Santiago Garcia de Mendoza._1 Capas de brochura das quatro obras publicadas da autoria de D. Santiago Garcia de Mendoza._2
  •  Capas de brochura das quatro obras publicadas da autoria de D. Santiago Garcia de Mendoza._3 Capas de brochura das quatro obras publicadas da autoria de D. Santiago Garcia de Mendoza._4
    Capas de brochura das quatro obras publicadas da autoria de D. Santiago Garcia de Mendoza.

 

Nos longos e tristes serões de Ponte de Lima foi cultivando o espírito e alimentando polémicas. Quando em 1865 surgiu “O Lethes”, o primeiro periódico desta vila, atreito à fação Regeneradora, D. Santiago iniciou aí uma profícua colaboração. Mas talvez entediado da pacatez da província, reserva algumas temporadas em Lisboa, com o fito de obter uma representação consular no estrangeiro. E consegue-a em 1873, já naturalizado português, com a nomeação de Cônsul em Marselha, para onde transfere a sua residência, sem contudo largar a de Ponte de Lima, onde seis anos mais tarde faleceria sua mulher, D. Emília Correia de Morais Leite de Almada e Castro. Onze anos depois, por carta patente de 2 de agosto de 1884, é nomeado Cônsul Geral na mesma cidade, mas pouco lhe aproveitou a distinção. Ao cabo de um mês sucumbia a uma hepatite crónica, tendo o enterro que se fazer a expensas do Governo, para que se não denegrisse a memória de um Comendador das Ordens de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Não deixou fortuna, nem geração que lhe perpetuasse a memória.

  • Assinatura_D. Santiago Garcia de Mendoza
    Assinatura de D. Santiago Garcia de Mendoza

João Gomes d’Abreu



[1] São disso exemplo os nos 34 (18 de outubro de 1868) e 35 (25 de outubro de 1868) do semanário de Ponte de Lima, “Estrella do Lima”, onde D. Santiago é descaradamente acusado de crimes de intriga, de traição, de roubo e de assassínio e, recorrendo ao direito de resposta, exige explicações.